A PRESENÇA E A AUSÊNCIA DA VOZ NO TEMPO E NA CIDADE: uma leitura merleau-pontyana de Carne e Pedra de Richard Sennett

Clarice Fortkamp Caldin

Resumo: Partindo-se do pressuposto que a fala é um produto do corpo e o corpo é um produto do mundo, pretende-se descrever a fala nos diversos períodos da história, atentando para os aspectos da fala ou da mudez humanas na vida privada e na vida pública. O ponto de partida para o resgate da fala humana desde a antiguidade clássica até a idade contemporânea foi a leitura de Richard Sennett. A seguir, articulou-se a fenomenologia de Maurice Merlau-Ponty  acerca do corpo e da linguagem e inferiu-se que a fala  é uma decorrência do mundo da percepção e indica a relação do homem e da mulher com o outro e com o tempo.
Palavras-chave: Voz. Corpo. Linguagem.

1 INTRODUÇÃO

O bibliotecário, como agente da informação, não pode restringir-se ao conhecimento técnico e tecnológico. Há que ter um conhecimento mais amplo, uma cultura geral, exercendo a liberdade de questionar as crenças costumeiras e adotar uma atitude filosófica, refletindo sobre os acontecimentos e não apenas apontando bibliografia sobre eles. Tal conhecimento exige leituras diversificadas. Portanto, não basta adquirir o livro para a biblioteca. Há que fazer uso dele.

Enquanto acadêmico do Curso de Biblioteconomia, o futuro bibliotecário deverá ter um olhar transdisciplinar para um entendimento da realidade. Isso implica em ser estimulado a ir além da grade curricular, a valer-se de leituras de textos nos vários campos do conhecimento que fornecerão fundamentação teórica para as atividades práticas que desenvolverá.

O artigo aponta os poderes da voz. Acredita-se ser de interesse para o futuro ou o atual profissional da informação, visto que o mesmo está inserido no cenário social e político da nação e necessita valer-se da voz como meio por excelência de troca de pensamentos, idéias e argumentações.

A presença ou a ausência da voz nos diversos períodos da história atestam a experiência humana  nos assuntos particulares, sociais e políticos - conferem visibilidade e poder aos corpos ou atestam a impotência  e a fraqueza dos corpos. Corpos falantes e corpos silenciosos, corpos que subjugam e corpos que são subjugados - da Atenas  antiga até Nova York moderna, a voz tem sido um indicativo seguro de quem está no comando e de quem é comandado.

Richard Sennett em Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental, estabelece uma ligação entre o corpo humano e a  cidade, constatando que a  arquitetura   facilitou ou dificultou  a vida rotineira, os negócios , a política, os rituais religiosos - enfim  o privado e o público. É proposta do presente artigo realizar um recorte do texto de Sennett: pelo viés da linguagem oral pretende-se compreender a presença ou a ausência da voz nas épocas antiga a contemporânea, limitada pelos espaços vazios e os edifícios da cidade.

Na tradição filosófica moderna a experiência sensível perdeu o status porque não consegue mostrar o critério de verdade, posto que a experiência depende das intenções e estas não são demonstráveis. Maurice Merleau-Ponty enfatiza o primado da experiência sobre a consciência e, segundo ele, os atos inconscientes predominam sobre os conscientes e a fala é a única forma de existência capaz de gerar história. Para o filósofo, a fala não é a representação do pensamento - ela se processa junto com o pensamento. Adotar-se-á no presente artigo a teoria merleau-pontyana de que a linguagem é extensão do corpo, faz parte do mundo da experiência, a palavra é criação de sentido e, o silêncio é uma forma de linguagem.

Pretende-se, portanto, resgatar a fala humana no tempo e na cidade apresentada por Richard Sennett, realizando uma articulação com a fenomenologia de Merrleu-Ponty.
 

2 A VOZ NO MUNDO GREGO: CORPOS QUENTES E CORPOS FRIOS

Pela leitura de Sennett (2003) percebe-se que a voz, na Atenas de Péricles, falava ou silenciava conforme a temperatura dos corpos - corpos quentes, masculinos, tinham permissão para expressar-se publicamente; corpos frios - femininos e escravos, calavam-se. É compreensível, portanto, que voz e nudez estivessem associadas. Aristóteles acreditava que a energia calorífica do sêmen penetrava na carne pelo sangue e, assim, a carne do macho era mais quente e seus músculos mais firmes. Portanto, somente o homem podia exibir sua nudez. Também, somente ele poderia percorrer os espaços abertos e ensolarados e expor a voz.

A crença geral era a de que quando os homens ouviam, liam ou falavam, a temperatura de seus corpos se elevava, junto com o desejo de agir. Calor corporal, fala e ação, estavam associados - para o macho. Apenas os homens livres, quentes, tinham a natureza adequada ao debate, pois sua temperatura inata se elevava com os argumentos lógicos apresentados e o calor das palavras servia para aquecê-los ainda mais, conduzindo à ação.

A arquitetura da cidade criava espaços que favoreciam o uso da voz. Por outro lado, os espaços abertos eram dotados de uma acústica natural que projetavam a voz do cidadão  e a posição corporal do orador facilitava a visão e a audição pelos seus pares (SENNETT, 2003).

Não era gratuita, entretanto, a verbosidade - era cultivada. Na  Academia, junto com as atividades físicas, os gregos aprendiam a projetar a voz, a articular firmemente as palavras, a argumentar e a decorar as longas estrofes de Homero para utilizá-las durante os debates.

Pode-se dizer, então, que a força das palavras desempenhava um papel fundamental no mundo grego. A retórica consistia na técnica de produzir o calor verbal, criar ilusão das palavras, saber oferecer réplicas aos oponentes. A voz podia seduzir, convencer, enganar. O corpo do cidadão estava exposto aos poderes da voz. Tanto a voz quanto o corpo eram objetos de admiração. O ginásio ensinava que o corpo pertencia à cidade: um rapaz forte seria um bom guerreiro e uma voz educada garantia a participação nos negócios públicos.

Por outro lado, as mulheres e os escravos, corpos frios por nascimento, eram lentos de raciocínio e incapazes de se expressar, pois o corpo frio absorveria menos calor e não seria rápido nas respostas. Por esse motivo, ficavam confinados ao espaço doméstico. Sennett (2003) destaca  que as mulheres, por serem corpos frios, não expunham a nudez. Em casa, usavam túnicas até os joelhos e na cidade usavam vestes que as cobriam até os tornozelos. Permaneciam na penumbra do interior das moradias visto seus corpos não serem adequados aos espaços de calor e sol.Os escravos também eram considerados corpos frios, pois as duras condições de trabalho e a servidão reduziam-lhes a temperatura. Tais corpos frios não tinham voz na cidade e raramente circulavam em público.

Para compensar a ausência da voz na cidade e nos negócios públicos, as mulheres realizavam uma liturgia, a Adonia, em homenagem a Adônis, deus morto em plena juventude e que proporcionava prazer sensual.

De acordo com Sennett (2003, p. 62) "a Adonia restaurava nelas o poder da fala e do desejo, o que lhes fora negado por Péricles, na Oração do Funeral". As mulheres reuniam-se nos telhados das casas, acobertadas pela escuridão da noite e com a permissão tácita e complacente dos homens. Tida como "a celebração dos desejos femininos insatisfeitos" (SENNETT, 2003, p. 68), a Adonia rompia o silêncio feminino: durante a noite  inteira bebendo e cantando as mulheres "recuperavam seus poderes de falar, expunham seus desejos" (SENNETT, 2003, p.69).

As mulheres aceitavam sua exclusão nos negócios públicos. A Adonia propiciava a explosão das vozes femininas em um espaço que não ameaçava o poder masculino. Não era, contudo, um ato de rebelião ou afronta aos corpos quentes dos homens. Era apenas a forma encontrada pelas mulheres de aprender a lidar com a realidade.

Segundo Merleau-Ponty (1999, p. 246) a palavra "é um dos usos do meu corpo", a palavra "faz parte de meu equipamento". Entretanto, como visto, na Grécia antiga, muito embora homens e mulheres tivessem o dom da fala, sua pronúncia era regulada pelas leis da cidade e pela cultura grega. Aos homens era permitida a fala falante e às mulheres, a fala falada. Para o filósofo, na  fala falada os símbolos são conhecidos ,  "a fala falada desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 267). Assim, as mulheres podiam desfrutar do já dito, já anunciado, já tido como verdadeiro. Aos homens cabia a fala falante, pois podiam inferir novos sentidos, tinham autorização da comunidade para  produzir significados com  "intenção significativa em estado nascente" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 266).

Como observado, os corpos  masculinos ocupavam um lugar especial no espaço, lugar privilegiado da fala, da argumentação, da exposição dos pensamentos, da ação, da tomada de decisões. Aos corpos femininos cabia o silêncio, a submissão, a resignação. Mas o silêncio das mulheres não deixava de ser  uma forma de linguagem - mostrava a experiência feminina de viver em um mundo tipicamente masculino e sua adequação aos padrões vigentes.Como disse Merleau-Ponty (1999, p. 262), a linguagem "é a tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações".
 

3 EM ROMA: A VOZ SUPLANTADA PELA VISÃO

Na Roma de Adriano, a visão das imponentes construções enfraquecia a voz do cidadão, pois "a glória das edificações sobrepujava as rebeliões dos súditos" (SENNETT, 2003, p. 86). O Autor mostra que a arquitetura servia para garantir um regime duradouro e preservar a grandeza de Roma. Tal grandeza deveria ser vista - e, assim, as edificações deveriam ofuscar a visão e calar as vozes do povo. Aos poucos, o centro urbano foi ficando sem vida - os comerciantes e as prostitutas passaram a ocupar os arredores - as vozes populares foram excluídas da cidade (SENNETT, 2003).

Em uma cultura em que ver era mais importante que ouvir ou falar, a pantomima ultrapassou a voz. A linguagem corporal - mão levantada, dedo apontado, costas voltadas - nos  espetáculos públicos nas arenas romanas, falava mais alto que os gemidos dos mártires e denotavam o poder visual.

Nessa sociedade que valorizava a imagem, um grupo se destacava como diferente - os cristãos, que não participavam no culto ao imperador e não rendiam homenagem à sua representação em escultura. Seu Deus, invisível, não prescindia, contudo, do uso da voz. O cristianismo se propagou pela palavra: a voz que pregava o evangelho transformava homens e mulheres em crentes.

Assim, diferentes dos romanos  dos seus dias, os cristãos valorizavam a voz – meio por excelência de louvarem a Deus, muito embora soubessem que seriam punidos pela pregação. Compreendiam plenamente os perigos de expor a voz.

Pela voz os cristãos divulgavam o Reino de Deus e por causa da voz eram castigados pelo Império Romano. Em um lugar e época em que a voz deveria ser abafada e se priorizava a visão dos edifícios e esculturas que atestavam a magnificência de Roma, os cristãos incomodavam por não se adequarem aos padrões vigentes. Para calar suas vozes, somente a morte. Assim, resgatava-se o poder da imagem: corpos que seriam mutilados por feras nas arenas ou queimados para iluminar a cidade eram a resposta do Imperador àqueles poucos que ousavam desafiar o poder reinante.

Para Merleu-Ponty (1999, p. 251, grifo do autor) "leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na cólera, ele é a própria cólera". Assim,  os romanos gesticulavam espontaneamente para condenar os mártires. Não precisavam pensar anteriormente e depois expor o gesto. Não precisavam lembrar-se de sentimentos anteriores de cólera – simplesmente apresentavam um gesto que era seu próprio pensamento. Assim também para os condenados, o gesto já dizia tudo – não era necessário pensar sobre ele. Como disse o filósofo "o sentido dos gestos não é dado mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador" e, portanto, os gestos eram percebidos e não interpretados, pois "não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual", visto que "é preciso reconhecer como irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo, me junto a ele em um tipo de reconhecimento cego que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 251, 252). De fato, os mártires cristãos se emprestavam ao espetáculo: seus corpos eram mutilados, queimados, dilacerados por feras para o deleite dos corpos romanos ávidos de imagens coloridas por sangue.  A mímica da cólera era uma gesticulação emocional - e tanto os romanos como os cristãos a conheciam bem. Entretanto estes últimos, em que pese sua condição de cativos, tinham a possibilidade de - também pelos gestos - expor suas idéias. As vozes eram abafadas pelos rugidos das feras ou pelo crepitar do fogo, mas o gesto de entrega ao martírio por acreditar em Deus falava aos opressores que eles não tinham o domínio total de seus corpos. Seus corpos, nas arenas ou nas estacas de tortura, eram, eles próprios, a linguagem do silêncio.
 

4 A VOZ NA IDADE MÉDIA: mediada pelo labor, pelo dinheiro e pela religião

Como os antigos gregos, também o homem medieval procurava, no ensino, aprimorar o uso da voz. Nas universidades o debate substituiu a voz única do professor e, como apontou Sennett (2003, p. 173), "a filologia desenvolveu-se nas corporações educacionais". A utilização eficiente da voz seria extremamente útil ao comércio, uma vez que pessoas que manejassem bem a linguagem teriam mais probabilidades de sucesso nos negócios.

No homem medieval emergia a voz econômica: o comércio falava mais alto que a política. O comércio impulsionou o crescimento das cidades e os inevitáveis problemas sociais. Assim, as vozes populares, sempre as mais sofridas, voltaram-se para a religião em busca de consolo. No século XII, confessor e penitente entraram em uma nova relação pelo uso das palavras: a confissão, antes um simples relato dos pecados, transformou-se em narrativa e interpretação das faltas, em um diálogo que permitia à voz falar e calar para bem ouvir (SENNETT, 2003).

Aos poucos, a voz cedeu lugar ao ouvido atento. Contribuiu para isso, o labor. Cisternienses, franciscanos e beneditinos laboravam nos jardins, em silêncio. A ordem era "laborare et orare" (SENNETT, 2003, p. 158).

Paul Zumthor (1993) relata que as vozes dos jograis eram consideradas rivais das vozes eclesiásticas, mas, mesmo assim, eram permitidas nas festas dos mosteiros sob a alegação de que o cantor de poesia estaria, na realidade, realizando um trabalho.
Assim, observa-se a estreita ligação da voz com o labor, sendo este último o responsável pelo falar ou ouvir e tendo como pano de fundo os interesses econômicos.

A competição no comércio gerou uma nova voz:  a dos cobradores. Em paralelo  à violência corporal, a violência verbal instilava o medo e servia como via de escape aos exaltados. Cumpre lembrar que comércio e religião andavam de mãos dadas - as feiras, organizadas em salões fechados, coincidiam com os feriados religiosos. Cumpre lembrar, também, que as vozes do comerciante e do comprador eram regadas à comida e bebida, e, portanto, perpassavam pelo labor, pois alguém teria plantado e colhido.

O trabalho organizado, nas guildas, fez prevalecer uma outra voz: a do mestre. Era ele quem ditava as normas dos ajudantes ou aprendizes, os quais se subjugavam pela necessidade de emprego garantido pela corporação. Mas, a voz do mestre se encontrava atrelada à voz dos ministros do rei que regulavam desde as normas de comportamento até o peso e preço padrão dos artigos. Como disse Sennett (2003, p. 171), "as guildas eram altamente cônscias dos efeitos econômicos devastadores que a competição descontrolada poderia acarretar".

Uma prova irrefutável de que religião e comércio andavam de mãos dadas, ora se amando, ora se odiando, era a aceitação da voz como contrato estabelecido entre cristãos e a exigência de um contrato, registrado por escrito, entre cristãos e judeus. A voz dos judeus só teria validade se fosse transformada em palavra escrita. Para justificarem tal discriminação, os cristãos afiançavam que os corpos judeus eram impuros – e isso porque além de serem sensuais e agiotas, valorizavam a voz do dinheiro em detrimento da voz da caridade. A compaixão cristã não poderia, dessa forma, deixar-se macular pela usura judia e, assim, um cristão não deveria manter contato físico com um judeu. Segregados em guetos a partir de 1515, os judeus para poderem circular na cidade, deveriam, como as prostitutas, exibir alguma vestimenta ou acessório amarelo – indicativos de sua identidade. (SENNETT, 2003).

Dessa forma, os judeus eram comparados às cortesãs, que seduziam pela palavra. Essas últimas, entretanto, estavam, muitas vezes, a serviço do clero. Sennett (2003) relata uma ceia no Vaticano em que as cortesãs dançavam nuas com os membros do clero e na presença do papa Alexandre VI e de sua irmã Lucrecia. Tal bacanal, realizada na Sala Régia onde aconteciam as reuniões dos cardeais, não feriu a suscetibilidade dos presentes.

Tal fato atesta que  não era a suposta impureza judia que ocasionava a segregação, mas sim interesses puramente econômicos. Toleravam-se os judeus porque eles faziam circular o dinheiro. A riqueza lhes era garantida, mas não a cidadania. O perigo, para o Império Romano, havia sido a presença crescente dos cristãos. Agora, o quadro se modificava: o perigo, para os aristocratas, era a imigração constante de judeus de todas as partes do mundo em busca de cidades mercantis.

Para podar, em parte, o poder econômico dos judeus, o catolicismo criou a Inquisição, denominada, na  Espanha e Itália, de  Santo Ofício. Dessa forma os hereges teriam suas vozes emudecidas pela violência. Na falta de bons argumentos para calar as vozes impuras e ricas, o clero achou por bem se valer da tortura e da morte para emudecer essas vozes inconvenientes, com a vantagem adicional do confisco de seus bens.

Como disse Merleu-Ponty (2002, p. 167, 168 grifo do autor) "o corpo do outro está diante de mim - mas, quanto a ele, leva uma singular existência: entre mim que penso  esse corpo, ou melhor, junto a mim, a meu lado, ele é como uma réplica de mim mesmo" e portanto, "todo outro é um outro eu mesmo". O filósofo reforça essa idéia ao acrescentar que "eu e o outro somos como dois círculos quase concêntricos, e que se distinguem apenas por uma leve e misteriosa diferença" (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 168, grifo do autor).  O cristão medieval esquecia-se do fato de que o judeu era seu outro, quer dizer, alguém com os mesmos anseios e necessidades -  sendo a única diferença o credo religioso. Essa diferença ocasionava a segregação dos corpos judeus e era o motivo alegado para calar suas vozes – e parecia perfeitamente válido aos detentores do poder eclesiástico emudecer os detentores do poder econômico. Essa diferença garantia, também, a identidade - ser cristão ou ser judeu. Pode-se dizer, então, que a segregação comprova o fato de que  o poder é uma relação intersubjetiva e que a relação com o outro é uma relação de carne.

5 IDADE MODERNA E CONTEMPORÂNEA:  A VOZ COLETIVA E A VOZ INDIVIDUAL

De acordo com Sennett (2003, p.213), "o homem moderno é, acima de tudo, um ser humano móvel". Tal mobilidade extrapolou o corpo na voz. A voz que deixou de ser individual para ser coletiva - é a vez das massas falarem.

Assim, na França revolucionária a voz das mulheres unidas pela fome e pela coragem iniciou a revolta do pão e a voz de Maria Antonieta garantiu à multidão que o preço do pão seria acessível, denotando uma preocupação com o perigo do coletivo enraivecido, pois, como aponta Sennett (2003, p, 233), a rainha escreveu ao embaixador austríaco: "Falei ao povo; aos homens da milícia e às mulheres do mercado, que estenderam suas mãos para mim, dei a minha mão". Como resultado, as vozes femininas no mercado tomaram a forma de uma canção da vitória "para mostrar, embora sejamos mulheres, a coragem pela qual não podemos ser recriminadas" (SENNETT, 2003, p. 234).

A fraca voz de Luís XVI deu vazão ao crescimento das vozes do clero, da nobreza e do povo - foram convocados os Estados Gerais. A voz do clero e da nobreza, contudo,  foi sendo abafada pela voz do povo - a Revolução Francesa atesta esse fato.

As construções palacianas agrediam os olhos dos pobres, o  vestuário rico contrastava com os trapos da população, a mesa farta era um ultraje ao estômago vazio do populacho. Para acabar com esse desnível acintoso, a voz da massa reagiu. Corpo irado e voz furiosa se uniram para reivindicar  direitos - o que significava mobilidade aliada à ação.

Entretanto, às vezes, as massas ficavam mudas, como que perplexas, como não entendendo plenamente tudo o que estava acontecendo e a rapidez com que os acontecimentos estavam ocorrendo nos espaços coletivos da cidade. Um exemplo disso foi o silêncio que acompanhou o cortejo na caminhada de Luís XVI para a guilhotina. Sennett (2003, p. 235) relata que "em freqüentes reviravoltas, as turbas caíam na apatia e, em silêncio, dispersavam-se; os espaços revolucionários não as despertavam, os espetáculos de violência bloqueavam seus sentidos".

É possível que os atos bárbaros cometidos na Revolução tenham tocado fundo o ser individual que se bestializou enquanto partícipe da multidão. O cidadão deve ter tido seus momentos de lucidez, em meio à loucura coletiva.Ou, pode ter percebido que suas vozes foram usadas não em proveito próprio, mas sim em proveito da burguesia ascendente.

Talvez, por isso, Marianne fosse muda. A representação da Revolução - uma figura feminina,  cidadã ideal pronta para alimentar todos os franceses - apresentava uma mudez significativa - indicava submissão à Revolução e amor irrestrito aos cidadãos do estado revolucionário. Posteriormente, entretanto, a figura de Marianne foi substituída pela figura de Hércules, a fim de calar as vozes femininas na política. Isso indica o controle masculino, sempre presente, no poder.

Na sociedade moderna, a passagem da voz  coletiva para a voz pessoal elevou o silêncio. A velocidade dos veículos comunitários transformou as viagens casa-trabalho, trabalho-casa em rituais de emudecimento. Na Paris de Haussman o centro urbano transformou-se em via de escape do fluxo de veículos e os pobres foram afastados para a periferia. No metrô de Londres  a fala calava e os olhos apreciavam a paisagem ou a leitura de um livro. Os de poucos recursos, segregados para os subúrbios, durante o dia, no espaço urbano,  conversavam com os ricos a respeito de negócios , mas, à noite, separados pela arquitetura da cidade, não tinham o direito de expor suas vozes (SENNETT, 2003).

Pode-se dizer, então, que corpos falantes diurnos transformavam-se, com a escuridão, em corpos mudos. A privação voluntária ou involuntária da fala foi tomando vulto e hoje se percebe a supremacia do silêncio, do individualismo e da busca de privacidade no recôndito dos lares. A humanidade à medida que prioriza a velocidade, prioriza também o isolamento. As vozes não seguem mais paralelas, elas correm cada uma em uma direção.

No século XVIII os cafés e os pubs eram espaços socializadores pela necessidade de informação. Falava-se para saber das notícias. Discutiam-se as matérias dos jornais, trocavam-se idéias a respeito dos acontecimentos do dia. Pouco a pouco esses espaços foram cedendo lugar ao silêncio. Sentava-se nos cafés para apreciar o movimento da rua, para olhar apenas, e não para conversar.

No século XXI, não há, a priori, espaços nitidamente socializadores. A internet substituiu os encontros pessoais, a notícia impressa em papel, a intermediação da fala humana em qualquer transação, seja ela pessoal ou de negócios. É garantido o direito de permanecer calado sem ser interpelado. Como disse Sennett (2003, p. 289) "o individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade". Separam-se os corpos e calam-se as vozes.

Segundo Merleau-Ponty (1999, p. 14) "o mundo é aquilo que nós percebemos", e "o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu  vivo: eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável". Dessa maneira, pode-se dizer que a história é uma interpretação do mundo da vida e o tempo é uma síntese do presente, do passado e do futuro, retomado pela fala.  Para o filósofo, entre a causa (pensamento) e o efeito (pensamento), existe o meio (fala). Afirma que a fala não apenas é autônoma na produção de sentido, mas a própria carne dos pensamentos, pois as palavras falam pensamentos que se encontram em algum lugar. Advoga, também, que os pensamentos são expressão de algo intercorporal e a fala é a abertura ao corpo do outro. Portanto a fala, grávida de conteúdo, é transcendente - por isso é que é linguagem. Atrás da linguagem há o sujeito que fala e, assim,  a linguagem é social pois as palavras são atos sociais e a comunicação é retomada e continuidade.

Cumpre, então, no mundo atual, retomar a fala. Transformar a fala falada (um valor público) em fala falante (que gera um efeito no sujeito), lembrando que a fala falada se modifica e que a fala falante permanece, pois nutre a intenção de comunicação. O processo intencional da comunicação é a essência da fala na existência humana e, segundo Merleau- Ponty (2002, p. 25), "não se concebem coisas ou idéias que venham ao mundo sem palavras". Portanto, pode-se dizer que  corpo e voz articulam-se no tempo e no espaço para perceber e compreender o mundo da vida, visto que o homem é um ser no mundo e se experimenta no ato de apreender as coisas.

6 REFLEXÕES

Se a fala é a função do corpo indispensável à coexistência, pode-se dizer que a humanidade, desde os primórdios até os dias atuais sempre procurou fazer bom uso da voz. Nem sempre obteve sucesso, mas continua tentando exprimir-se de maneira a facilitar  a vida em comum.
A voz, através do tempo, tem indicado o sentido do ser. A palavra sempre quer colocar o ser em algum lugar. Tem sido dessa forma de Atenas de Péricles às cidades do século XXI.  A voz, seja ela expressa ou muda, é uma indicação da posição do homem ou da mulher na comunidade, na religião e na política.

Na colina de Pnice, na Ágora e no Areópago, os gregos do passado expunham suas idéias pela voz - cultivada na Academia; as mulheres recuperavam o poder da fala pela Adonia; em Roma tentou-se enfraquecer a voz do cidadão (e suas idéias) pela visão de edifícios imponentes e pela ameaça de morte; na Idade Média  a voz deu vida ao labor, ao sistema econômico e à religião; no mundo moderno e contemporâneo alternaram-se as vozes  coletivas que expressavam o desejo e o ideal das massas e a vozes individuais com o anseio e as idéias pessoais.

De uma forma ou de outra, a palavra sempre acompanhou o corpo e suas intenções. Assim, o falar e o calar das vozes indicam a presença e o pensamento do homem e da mulher no mundo, sua relação com o outro e sua relação com o tempo. Portanto, cabe ao aluno de Biblioteconomia fazer uso da voz - seja em sala de aula argumentando com os professores e expondo suas idéias, seja  participando do centro acadêmico, seja apresentado trabalhos em eventos da área. O mesmo se pode dizer para o profissional bibliotecário - que fale, que se deixe ouvir, que seja atuante na instituição em que trabalha, que aponte novas  estratégias  para as atividades corriqueiras, que forneça idéias inovadoras para a excelência dos serviços que presta a uma comunidade de usuários que a cada dia se apresenta como mais exigente.

Na sociedade de informação não basta ter o domínio dos processos técnicos. Urge ler e divulgar seus conhecimentos por meio da voz, que tanto pode ser de forma oralizada quanto escrita. O profissional da informação deve não apenas assistir a eventos, mas aproveitar essas oportunidades de reunião com seus pares para relatos de experiência; deve preocupar-se em registrar suas pesquisas leituras em artigos científicos. Expor seus pontos de vista, refletir sobre o apreendido, questionar saberes consolidados - eis a ordem do dia.
 

REFERÊNCIAS

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: M. Fontes, 1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Tradução de Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução de Amália Pinheiro, Jerusa Ferreira.  São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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THE PRESENCE AND THE ABSENCE OF THE VOICE IN THE TIME AND THE CITY: a Richard Sennett Meat and Stone reading merleau-pontyana

Abstract: Forasmuch as the voice is a product of body and the body is a product of the world, pretend is to describe the voice on the several ages of history, giving  special attention to aspects of human voice or speechlessness on private life and on public life. The start point to the ransom of voice since the classic ancient times until the contemporary times was the reading of Richard Sennett. It follows that was articulate the phenomenology of Maurice Merleau-Ponty about body and language and the conclusion was that voice or speech is a fact of the world of perception and shows  the relation of men and women with the other and with the time.
Keywords: Voice; Body; Language.
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Clarice Fortkamp Caldin

Professora no Departamento de Ciência da Informação no Centro de Ciências da Educação na Universidade Federal de Santa Catarina
Mestrado em Literatura, em 2001, pela UFSC
Doutoranda em Literatura, na UFSC
E-mail: claricef@matrix.com.br
 
Artigo recebido em: 05/10/2005
Aceito para publicação em: 19/12/2005
Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, v.11, n.1, p. 05 -17, jan./jul., 2006.